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A METAMORFOSE PARÓDICA DOS CAVALEIROS: UM BREVE ESTUDO COMPARATIVO

Posted by FLAVIO ALVES DA SILVA on 17:08
TRABALHO PREMIADO COMO 2º LUGAR NA JORNADA CIENTÍFICA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO LUTERANO DE PALMAS - CEULP/ULBRA - ANO DE 2006.

Flávio Alves da Silva1, Maria de Fátima Rocha Medina2
1Graduando, Letras, CEULP/ULBRA.
2Doutora em Filologia Hispânica, profissional, Letras, CEULP/ULBRA.

RESUMO:
Os cavaleiros das novelas de cavalaria, da Idade Média, sofreram metamorfoses tanto físicas e mentais quanto em suas funções ideológicas ao longo do tempo. O presente trabalho apresenta um estudo comparativo entre cavaleiros de épocas distintas em que se analisa a constituição do modelo, sua recriação e permanência na literatura, pela paródia, como elemento recriador. Tem-se como corpus deste trabalho A demanda do Santo Graal, Dom Quixote de La Mancha e O Cavaleiro Inexistente. O plurilingüismo de BAKHTIN fundamenta-o teoricamente. A análise dos cavaleiros Galaaz, Dom Quixote e Agilulfo evidencia as transformações decorrentes do poder plurilíngüe e fecundo da paródia na literatura.
PALAVRAS-CHAVE:
Cavaleiros, metamorfoses, paródia.
INTRODUÇÃO:
As novelas de cavalaria surgem por volta do século XIII e atingem seu apogeu que dura até parte do século XIV. Em A Demanda do Santo Graal surge um modelo de herói que se contrapõe ao herói clássico grego. Os cavaleiros são dotados de características especiais como destreza com as armas, lealdade e honra. Além disso, suas ações se direcionam a servir ao rei e à Igreja. Eles lutam para perpetuar a fé cristã católica em nome de Deus. Porém o cavaleiro medieval sofre transmutações ao longo do tempo, tanto em características físicas e mentais, quanto em suas funções ideológicas. Por exemplo, no século XVII, ele ressurge em Dom Quixote de la Mancha, como um cavaleiro intrépido e cômico que denuncia, pelo riso paródico, as injustiças e desigualdades de seu tempo, além de valorizar o homem como ser condutor de seu destino. Já no século XX, aparece o cavaleiro da razão e do caos em O Cavaleiro Inexistente, um ser de raciocínio esplêndido e de ações perfeitas. Sem mácula em sua armadura, mas sem corpo dentro dela. Ele nega as certezas absolutas do mundo, além de parodiar os discursos ideológicos e evidenciar a inexistência de um ser humano perfeito. A cavalaria vem sofrendo transformações ao longo de sua existência. Trata-se de um modelo cíclico, dialético, metamórfico. É sonho e realidade em um dialogismo concomitante que permite criar e recriar o cavaleiro sob influência da realidade exterior em seus novos tempos, procurando adequar-se às novas necessidades, aos anseios, ao desenvolvimento e, por conseguinte, à constituição do novo ser humano em cada época. Ao analisá-los comparativamente, verifica-se as vozes exteriores que se manifestam a cada nascimento e/ou a cada recriação de um cavaleiro.
MATERIAIS E MÉTODOS:
O objetivo deste trabalho é analisar as transformações ocorridas a partir do
cavaleiro medieval e sua permanência na literatura por meio de recriações paródicas. O método utilizado, para tanto, foi a análise comparativa dos cavaleiros Galaaz, Dom Quixote e Agilulfo criados e/ou recriados em momentos distintos nas obras de Heitor Megali (manuscrito do século XIII), Miguel de Cervantes (1952) e Ítalo Calvino (2000), respectivamente. Teve como fundamentação a teoria do plurilingüismo, de Bakhtin (1998), em que a paródia é um elemento fecundador.
RESULTADOS E DISCUSSÕES:
Por volta dos séculos XII, XIII e parte do século XIV as novelas de cavalaria atingem seu apogeu. Desse tipo de narrativa surge um modelo de cavaleiro destemido, íntegro, leal, forte, hábil lutador e defensor da honra das donzelas. É o modelo contido n’A Demanda do Santo Graal (manuscrito do século XIII). O homem, para ser instituído como cavaleiro, tem que possuir características e habilidades específicas como aptidão física, destreza com as armas, lealdade, honra e obediência ao rei e à Igreja. Assim é Galaaz, um ser humano além dos outros homens, capaz de lançar-se em batalhas na demanda pelo Santo Graal, de corpo e alma. É servo fiel e propagador da fé cristã e converte os pagãos como Palamades. Ele tem suas ações direcionadas por princípios e normas morais e religiosas. Sua conduta e seus feitos em vida são recompensados, enquanto vivo, com honrarias; e, em morte, com o galardão celestial. Esse cavaleiro luta geralmente sozinho, mas sempre representa a Távola Redonda e a Igreja. Exemplifica o homem como ser guiado pela fé e pela moral, cujo destino não lhe pertence. É vassalo do rei e da igreja e é essa posição que lhe dignifica perante os outros homens e a Deus. Com isso, as vozes conservadoras do mundo exterior
permeiam as ações e condutas dos cavaleiros que somente assim podem existir
como tal. Já no século XVII, surge um novo modelo, o cavaleiro intrépido, fraco,
cômico, defensor das viúvas, um reflexo às avessas do cavaleiro de outrora. É um
modelo que se origina no romance Dom Quixote de La Mancha (Miguel de Cevantes, 1605). Dom Quixote é um cavaleiro de armadura de latas, elmo de bacia de barbeiro, que se lança pelo mundo em busca de aventuras, luta pela justiça e leva a fama de suas façanhas aos ouvidos de sua amada Dulcinéia del Toboso para ser digno de sua graça. Porém sua posição como cavaleiro não surte efeito sobre ninguém e não existe qualquer respeito à sua figura. O cavaleiro e seu fiel escudeiro não recebem as honrarias que outrora eram destinadas aos seus companheiros de classe e, às vezes, nem mesmo a gratidão daqueles que ele ajuda, como no caso dos condenados a Gáles. A figura do escudeiro reflete esse avesso, pois Sancho Pança é quem possui o pensamento lógico, é que reside na realidade e cuida não somente das armas de seu amo, como também zela pelo próprio Dom Quixote como cavaleiro e amigo, enquanto este vive no mundo dos sonhos, de forma louca. Quixote busca o ideal de vida, os valores que fundamentam e dão razão para a existência do ser. Sua coragem e fé em si mesmo
são inabaláveis. Ele não teme lançar-se às batalhas, ainda que saia delas sempre
derrotado. Denuncia, pelo riso, as injustiças e provoca reflexões até a atualidade.
Reflete-se em Dom Quixote e suas aventuras a realidade histórica de sua época, a
ruptura com os paradigmas que constituíam o ser humano até então. Vê-se nele a
liberdade de pensamentos e de sonhos. Homem senhor de seu destino que busca transformar a realidade de acordo com seus anseios e desejos. Na linhagem do
personagem cervantino, em pleno século XX, quando não se pensa mais nos
cavaleiros, eis que ciclicamente, das ruínas circulares da novela de cavalaria, surge
o avesso do avesso, um cavaleiro impecável, perfeito e límpido. É um modelo que
desmascara e desmonta seus antepassados e que se constitui no simples fato de
não existir. É O Cavaleiro Inexistente (Ítalo Calvino, 2000), guerreiro de armadura
alva, límpida, reluzente, com habilidades de esgrimir a espada com perfeição,
conhecimento e raciocínio brilhantes para as táticas de batalha. Suas ações
impecáveis são motivos de constrangimento para os outros cavaleiros que nutrem
por ele antipatia, ódio, desprezo e inveja. O Cavaleiro de Selimpia Citeriore nega
seus antepassados, retratados em seus companheiros. Desmascara as ações de
bravura desmedidas e honras inquestionáveis que são consideradas fruto somente
dos cavaleiros enquanto homens superiores. Reflete-se em Agilulfo Emo
Bertrandino o homem como ser passível de falhas e, portanto, imperfeito. Em
companhia do cavaleiro da triste figura anda Gurdulu, seu escudeiro trapalhão e
esquizofrênico, possuidor de um corpo que é desprovido de razão e de
inteligibilidade, em contrapartida ao amo que possui e faz uso, em cada
movimento, de magnífica racionalidade, enquanto dentro da armadura não existe
corpo algum. Agilulfo reflete os homens desnorteados, inseguros, incrédulos e
descentes com sua existência. Seu paradoxo existencial coloca em xeque a perfeição das ideologias. Sua busca pela existência e seus feitos dialogam com a realidade vivida pelo homem no mundo exterior ao cavaleiro, tornando-o atual a cada leitura.
CONCLUSÕES:
Os diferentes modelos de cavaleiros analisados demonstram metamorfoses sofridas ao longo do tempo. As funções da cavalaria se adequam a novas realidades. Galaaz, Dom Quixote e Agilulfo dialogam com o mundo exterior e exercem funções distintas em relação a ele, pois “o discurso desses narradores é sempre o discurso de outrem numa linguagem de outrem” (BAKHTIN, 1998). A perfeição Galaaziana traduz o mundo e o homem com destino certo, com valores morais e religiosos que o norteiam. Enquanto a recriação cavalerística Quixotiniana é paródica, já que assume esses valores para negá-los pelo riso. Os valores fundamentais do homem são negados por meio dos atos cômicos do cavaleiro que diverte, renega e denuncia, o que ratifica em Bakhtin (1998) “o riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador [...]”. Já a paródia Agilulfista refaz a perfeição dos discursos ideológicos, porém nega suas aplicações ao homem pelo fato de não existir fisicamente. Sua existência paradoxal configura a imperfeição humana e sua busca por constituir-se como ser. Esse dialogismo torna a cavalaria mística, metamórfica e cíclica. Portanto, quando se está em ruínas e parece sucumbir, o cavaleiro pode ser sonhado de novo e de forma diferente, nova, com outros traços, outras funções e direções. Dialoga com a formação de novas realidades externas e internas do ser humano e do próprio cavaleiro, além de adequar-se a elas. A paródia é metamórfica, plurilíngüe e dialógica, o que garante um processo circular de morte, vida e ressurreição ao próprio cavaleiro e também aos gêneros literários ao longo dos tempos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. 4. ed. Trad. de Yara Frateschi. São Paulo:
Hucitec, 1999.
BAKTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance.
4. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
CALVINO, Ítalo. O Cavaleiro Inexistente. Trad. de Nilson Moulin. São Paulo: Cia
da Letras, 2000.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Trad. de Almir de Andrade
e Milton Amado. Edição compacta. São Paulo: EDIOURO, 1952.
MEGALI, Heitor (org.) A Demanda do Santo Graal: manuscrito do século XIII.
São Paulo: T. A. Queiroz: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: Prosa I. 17. ed. São Paulo: Cultrix, 2000

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