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A LOUCURA EM "O RECADO DO MORRO" DE GUIMARÃES ROSA

                                                               "Muitas vezes,
                                                                até mesmo um louco
                                                                raciocina bem"
                                                                                                  Provérbio grego

A verdade não reside na sabedoria, nem acompanha a sabedoria. Antes trilha as veredas bifurcadas ao lado daquela que livra o homem das preocupações e com sua própria voz afirma "sou eu a única capaz de alegrar a deuses e homens". É a força motriz de todo engenho humano. Motivo e/ou meio pelo qual se realiza os acontecimentos. Sendo assim, na verdade, a guia da sabedoria, pois a esta, enquanto verdade é oriunda daquela. Este único bem supremo é a Loucura. Nela se juntam todas as coisas, desde o senso comum e o saber científico até o sagrado e o profano.
Em O Recado do Morro, a loucura é a grande força mística que opera para o desenvolvimento dos atos e é por meio dela que tramita e pulsa toda a ação e densidade dramática da narrativa.
A mensagem enviada a Pedro Osório, vulgo Pê-Boi, viaja dentro da lucidez ofuscante da loucura por meio das personagens consideradas pela sociedade como loucas e/ou sem um juízo bem formado. Primeiro Malaquias "o Gorgulho", depois Catraz o qualhacoco, desse é passada ao menino Joãozezim e em seguida ao Guégue, este a transmite para o Jubileu ou Santos-Óleos "o nominêdomine", que a divulga na igreja e acaba sendo acolhida pelo coletor e repassada ao Ludelim Pulgapé e dele a seu destinatário.
Cada uma dessas personagens possui atributos de loucos e são assim considerados. Eles apresentam em si várias das formas da loucura. Dois deles, Gorgulho e Qualhacoco, vivem isolados em locas nas montanhas, avessos a tudo e a todos se restringem a um contato extremamente necessário com outras pessoas. É a loucura do isolamento. Um outro era o Guégue "o bobo da fazenda [...] ah, um especialmente" (ROSA, p. 38-39). A loucura da demência. Já o Santos-Óleos pregava o fim do mundo e vivia em penitência ao modelo dos profetas do cristianismo. É a santa loucura da religião. Enquanto que o Coletor tinha sido alterado em seu juízo pelo sonho de riqueza. A poderosa loucura do dinheiro. E quanto ao menino Joãozezim não se pode dizer que não tinha juízo certo, mas as crianças é negado o direito de possui sabedoria por falta de idade e conseqüente experiência. Ser louco é ser criança. É não saber o que se faz ou que se diz. É a loucura da infância. Por ultimo Laudelim Pulgapé é um poeta, um cantador. Tem sobre si o estigma do sonhador, do homem que vive no mundo da lua. Na insanidade da poesia e da música. É a loucura dos poetas e escritores.
Esses estados de loucuras os deixam mais sensíveis e os elevam em espírito sendo somente assim possível entenderem, mesmo sem ter consciência disso, a mensagem a ser transmitida. A loucura mostra-se superior a tudo, inclusive ao místico, pois o acolhe em si e o transporta. Diametralmente oposta a isso está a sabedoria. Sua inferioridade enquanto consciência, aqui tido como sanidade mental, é evidenciada nos momentos de transição da mensagem, pois ela é repassada sempre na presença dos personagens não-loucos, inclusive Pê-Boi, e mesmo assim eles não a entendem. Enquanto não ocorre entendimento por esses um louco compreende. Devido a esse não entendimento a mensagem continua a viajar dentro do universo da insanidade mental dos seres humanos sempre se fazendo presente, sendo dita a todos e em especial a Pedro Osório até o momento em que este a compreende. Este momento epifanico acontece conforme James Joyce define a epifania. Como sendo esta "uma manifestação espiritual subida" (Apud Gotlib, 1999).

Traição... Caifás... Parecia coisa que tinha estado escutando a vida toda! Palpitava o errado. Traição? Ah, estava entendendo. Num pingo dum instante. (ROSA, p 74 – grifo nosso).

Faz-se importantíssimo ressaltar o momento em que isso acontece, pois tal fato ocorre quando Pê-Boi está sob efeito do álcool, portanto em uma situação de anormalidade da sanidade mental, uma situação de loucura.
Nesse conto, além da mensagem correr pela voz dos loucos, a força geradora, em sua essência desencadeadora de ação, de todo o engenhoso plano de emboscada não é outra senão a loucura. Pode-se afirmar que o ciúme e o ódio é que levaram os sete homens a almejarem a morte de Pê-Boi, pois este
Era ainda teimoso solteiro, e o maior bandoleiro namorador: as moças todas mais gostavam dele do que qualquer outro; por abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava e tomava a que bem quissese, só divertimento de indecisão. Tal modo que muitos homens e rapazes lhe tinham ódio, queriam o fim dele [...] (ROSA, p. 14)
Contudo, esses sentimentos não eram por si sós, ou mesmo juntos, capazes de levar qualquer um, ou todos, de seus inimigos a tentarem a sorte em combate. "[...] se não se atreviam a pegá-lo era por sensatez de medo, por ele turana e primão em força, feito um touro ou uma montanha" (ROSA, p. 14). Sendo assim eles apenas tomam coragem de realizar o atentado sob forma de traição, porém a iniciativa da ação de combate não parte deles exatamente por se encontrarem em um estado considerado de sabedoria. O embate só tem início em um momento de loucura de Pedro Osório ao entender a mensagem

Soprou.  "Doidou, Pê? Que foi?" Traição, de morte, o dano dos cachorros!  "Pois toma, Crônico!"  e puxou no Ivo um bofetão, com muito açoite. (ROSA, p. 74-75).

A loucura perpassa toda a narrativa d'O recado do morro. Sua compreensão exige o entendimento da mensagem a ser transmitida e só dentro da condição de loucura ela pode ser entendida plenamente. Seus portadores possuem o dom supremo. A Loucura. A provedora dos sentimentos de felicidade e
                                                  Aqueles que tiveram o privilégio tão raro desses sentimentos
                                                  experimentam uma espécie de demência. Têm discursos 
                                                  incoerentes, estranhos para a humanidade. Pronunciam 
                                                 palavras sem sentidos e a expressam de seus semblante
                                                 muda a cada instante. (ERASMO DE ROTTERDAM, p. 106).

Com isso o conto tem como sua essência geradora e força motriz a loucura. Aqui, esta é mais que uma personagem. É o que conduz as personagens. É o fio condutor da construção de sentido da história narrada. Podemos então concordar com Erasmo de Rotterdam e afirmamos que a loucura domina o mundo e se faz presente em casos extraordinariamente comum como o narrado por Guimarães Rosa.



BIBLIOGRAFIA
ERASMO de rotterdam. Elogio da Loucura. São Paulo: Ed. Escala, 2005. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 3).
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ed. Ática, 1999. (Série Princípios).
ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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